13/03/05 - 15h22
Glória Reis
Alguns leitores da minha geração devem se lembrar da polêmica na imprensa, nos anos 80, quando o filme “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, foi proibido no Brasil, sob a alegação de que era uma ofensa à religião católica.
Durante dias e dias foi assunto na imprensa. Naquela época se discutia cultura na mídia. Não é essa mesmice de hoje, em que só se fala de políticagem, guerra, Bush, desfile de moda e casamento de jogador de futebol.
Os leitores acompanhavam o tema, escreviam cartas aos jornais e os colunistas tratavam do tema ardorosamente.
Numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, perguntaram a Godard o que achava da proibição do seu filme no Brasil e sua resposta foi inusitada:
- Não estranho a censura ao meu filme e sim por que não censuram a TV Globo porque, ela sim, é pornográfica.
Quando li a entrevista, o que mais me surpreendeu foi o fato de um francês, tão distante do Brasil, ter essa informação dos malefícios de um canal de televisão em outro país. E, principalmente, tratando-se de um fato do qual nem os próprios brasileiros se dão conta.
Hoje, ao assistir alguns episódios da novela Senhora do Destino, fico me lembrando de Godard e do seu sábio conselho, que, infelizmente, nunca foi seguido em nosso país.
Reina uma ditadura do “vale-tudo” nos meios de comunicação.
Não há regras, que é a base da democracia. Regras, respeito, ética, principalmente aos que “fazem a cabeça do povo”. E, como sabemos, a Globo seria a primeira a dar o exemplo. Mas ao contrário, ninguém ousa mexer com a deusa platinada. E por isso, ela abusa. Deita e rola. É como uma criança mimada que sabe o quanto tem o poder nas mãos, o quanto todos a temem.
A “liberdade de expressão” é a nossa vaca sagrada. Como na Índia, pode passear à vontade pelas ruas, perturbar o trânsito e a vida das pessoas, mas não se pode tocar nela, mesmo que, de sagrada e liberdade não tenha nada.
A Globo cada vez mais se excede, tirando proveito do seu posto de monopólio, totalmente alheia ao “tsunami” que provoca na cultura do nosso povo. Perdeu a noção de limites, numa ostensiva demonstração daquilo que José Saramago disse: “acabaremos por cair num organismo autoritário dissimulado sob os mais belos parâmentos da democracia.”
Certa vez li uma frase, não me lembro de quem: "fascismo não é só impedir de ver, é também obrigar a ver". Estamos, então, sob o fascismo da Globo. Ela nos obriga a ver. Não me venham com esse clichê de que se pode mudar de canal. É mais uma forma elitista de encarar a questão. Muda de canal quem tem opção, uma delas a tv paga. Não se trata do que eu vejo, do que expectadores esclarecidos vêem, mas sim do que é oferecido ao povo sem bula, sem apontar as contra-indicações que, no caso da Globo, podem levar este país a um efeito mortal dos nossos valores culturais, morais e éticos.
Como todo engano um dia chega ao fim, só nos cabe detectar o calcanhar de Aquiles que desencadeará o fim do abuso. Como no episódio de Godard, só lá fora é que vão provocar um exame de consciência na Globo pornográfica.
A censura virá de outros países, talvez em forma financeira - a única a que ela é sensível - não comprando mais suas produções abusadas. Aí, sim, ela vai se perguntar: “Onde foi que errei? “. Soube que a mini-série "Os Maias" foi um fracasso em Portugal, entre outras razões, por terem alterado a bel prazer o maravilhoso enredo de Eça de Queiroz. Aqui no Brasil, os meios de comunicação podem tudo, não há mecanismos de defesa ao alcance da população.
Acredito que chegaremos a um ponto de exaustão. Mas para o povo, já será tarde demais. Gerações já terão proliferado sob o efeito das novelas tendenciosas, pornográficas e violentas, da idiotia dos big brothers, do famigerado Casseta e Planeta e tudo o mais que se escancara, sem nenhum cuidado com a responsabilidade social, marca imprescindível de uma empresa que recebe concessão do governo para atuar junto à população.
Hoje se brada tanto em limites na educação de nossas crianças e adolescentes. Por que não limite aos adultos? Por que não aos meios de comunicação? Por que não à Globo?
Fonte: Revista Palco